Localizados na parte superior do trato gastrointestinal, o esôfago e o estômago são responsáveis pelo início da digestão química. Enquanto o primeiro realiza o transporte do bolo alimentar por meio de contrações da musculatura lisa, o estômago recebe os alimentos e, através da liberação do suco gástrico, quebra as proteínas em polipeptídeos menores (quimo) que, após um período, seguem para o intestino delgado. Se o funcionamento entre os dois órgãos não está adequado podem ocorrer manifestações clínicas crônicas que causam grande desconforto, como dor irradiada, queimação, regurgitação, dificuldade de deglutição e estufamento. Se forem negligenciados, esses sintomas podem evoluir para casos mais graves, comprometendo a saúde e a qualidade de vida. Entre as doenças esofágicas e estomacais, a doença do refluxo gastroesofágico (DRGE) é a mais prevalente, atingindo cerca de 20% da população adulta brasileira.
Crônica ou com sintomas por longa duração, a DRGE é a forma mais intensa do refluxo, em que ocorre retorno involuntário e repetitivo do conteúdo estomacal para o esôfago. “No processo digestivo regular, os alimentos mastigados passam pela faringe e pelo esôfago e caem no estômago. Entre os dois últimos, o esfíncter abre para dar passagem aos alimentos e se fecha imediatamente para impedir que o suco gástrico penetre na mucosa do esôfago. Quando esse sistema não funciona adequadamente, o esfíncter fica enfraquecido, permitindo que a comida e os sucos digestivos estomacais retornem ao esôfago atacando a mucosa que o reveste e causando sintomas que podem evoluir para um quadro inflamatório”, descreve o gastroenterologista Tomas Navarro Rodriguez, do HC-FMUSP. Pacientes que apresentam hérnia de hiato (deslocamento da parte superior do estômago para dentro do tórax) estão mais predispostos a ter a doença. Obesidade, tabagismo, uso de determinados medicamentos (anti-histamínicos, analgésicos e antidepressivos) e consumo excessivo de alimentos como chocolate, condimentados, café, bebidas gasosas ou alcoólicas representam fator de risco
A azia ou pirose, causada pelo retorno do conteúdo gástrico para o esôfago, é o sintoma clássico da DRGE, e é mais comum a sensação de retorno de conteúdo líquido ácido ou azedo. Em alguns casos pode haver regurgitação, caracterizada pelo retorno de alimentos mais sólidos ou mal digeridos. Essa sensação de queimação que vem do estômago e sobe pelo meio do peito em direção à garganta, quando persistente, pode acarretar complicações esofágicas como erosões, úlceras e até estreitamento (estenose) que dificulta a progressão dos alimentos (disfagia). “Sintomas extraesofágicos como rouquidão, laringite, queimação na garganta, tosse persistente e chiado no peito denotam que o conteúdo gástrico está atingindo a região acima do esôfago e o trato respiratório. Em casos mais raros, a exposição mais intensa e longa do esôfago ao ácido gástrico pode alterar o tipo de mucosa na junção com o estômago, denominado esôfago de Barrett, podendo evoluir ou não para o câncer”, adverte o gastroenterologista Renato Duffles Martins, médico assistente da disciplina de Gastroenterologia na Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp).
Os sintomas clínicos são os principais indícios para a DRGE, mas é importante que o médico avalie a necessidade de realizar endoscopia digestiva alta para obter uma visão direta da mucosa esofágica, realizar biópsias e avaliar se existe ou não hérnia de hiato. Exames complementares como pHmetria ou manometria esofágica podem ser necessários em alguns casos. O tratamento clínico é o mais usado e se baseia na administração de fármacos que diminuem a produção de ácido pelo estômago. “Nos casos de hérnia de hiato maiores, esofagite grave ou outras condições em que o paciente não responda bem aos medicamentos, procedimentos cirúrgicos podem ser indicados para controlar o refluxo de longa duração”, comenta o gastroenterologista Renato Duffles Martins. Paralelamente, o tratamento inclui mudanças de hábitos de vida como perda de peso e a adoção de refeições de menor volume e com baixo teor de gordura. É importante também a identificação de possíveis alergias – como ao leite e glúten –, e evitar cafeína, álcool e nicotina. Para desfrutarem de uma noite de sono repousante, refeições noturnas menores e se deitar com intervalo de duas horas após a refeição são medidas que auxiliam bastante o tratamento.
Outras doenças relacionadas com a parte superior do trato gastrointestinal também merecem atenção, como pancreatite e cálculos biliares. Causada pelo consumo excessivo de álcool, a pancreatite na fase aguda forma pequenos cálculos que provocam dor muito forte no estômago, enquanto na fase crônica ocorre enrijecimento dos tecidos, com atrofia do órgão. Sem cura, o problema pode ser tratado com fármacos para controle dos sintomas. Já os cálculos na vesícula biliar ocorrem quando o fígado produz colesterol e/ou sais biliares em excesso, resultando na precipitação da bile e formando pequenos grânulos que evoluem para pedras. Além da dor insuportável, o problema pode causar náuseas e vômitos. “Os cálculos podem até ser eliminados naturalmente com a ajuda de medicamentos, porém, o mais indicado é a cirurgia”, orienta o médico Tomas Navarro Rodriguez.
Helicobacter pylori
Estima-se que a bactéria H. pylori, uma das principais causas de inflamação no estômago, esteja presente em 50% da população adulta no planeta, sendo mais frequente nas regiões de baixo índice socioeconômico. A contaminação ocorre principalmente na infância e pode se manifestar anos mais tarde ou até ser assintomática por toda a vida. A infecção acontece quando a bactéria se instala na mucosa superficial do estômago, pois consegue sobreviver a esse ambiente por ter mobilidade e produzir amônia para se proteger contra a acidez estomacal. A H. pylori participa como fator causal na maior parte das úlceras gástricas e duodenais e, após muitos anos, sua presença pode levar à atrofia da mucosa gástrica e predispor ao câncer de estômago (leia mais na página 14). Em geral, os sintomas incluem dor na região do estômago, azia, queimação e indigestão. Como podem ser confundidos com outras doenças, o médico deve fazer uma investigação criteriosa dos sintomas, e a endoscopia com biópsia é o meio mais utilizado para diagnóstico. “Quando o paciente não pode se submeter à endoscopia, exames como teste de antígeno fecal e teste respiratório podem ser usados, mas são situações pouco frequentes. O tratamento consiste no uso de antibiótico e protetores gástricos, como os inibidores da bomba de prótons, com objetivo de eliminar a bactéria, diminuir a acidez do estômago e melhorar o quadro de saúde”, destaca o gastroenterologista Renato Duffles Martins, da EPM-Unifesp.