Caracterizada por sintomas persistentes ou recorrentes que afetam a região superior e central do abdômen (epigástrio), a dispepsia funcional é um dos problemas mais prevalentes nos consultórios. As queixas mais comuns incluem dor ou queimação epigástrica, má digestão, saciedade precoce e eructação (excesso de gases no estômago). Segundo os critérios do consenso de Roma IV, a dispepsia funcional engloba a síndrome da dor epigástrica, que geralmente apresenta dor ou queimação epigástrica moderada a intensa intermitente – no mínimo uma vez por semana nos últimos três meses – e a síndrome do desconforto pós-prandial, cujos sintomas predominantes incluem empachamento pós-prandial e/ou saciedade precoce, no mínimo uma vez por semana, por três meses consecutivos.
“Embora a presença da sintomatologia possa estar relacionada a uma doença gastroduodenal específica, a maior parte dos pacientes com queixas dispépticas crônicas submetidos a investigações laboratoriais, endoscópicas e ultrassonográficas não apresenta qualquer alteração orgânica que justifique os sintomas”, acentua o gastroenterologista Jorge Mugayar Filho, responsável pelo Ambulatório de Doenças Inflamatórias Intestinais do Hospital Universitário Antônio Pedro e professor coordenador do curso de especialização lato sensu em Gastroenterologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro. O tratamento farmacológico é mais eficaz quando dirigido ao sintoma predominante, por isso, anamnese e diagnóstico adequados são indicados. A gastroenterologista Maria do Carmo Friche Passos comenta que, em pacientes jovens e sem sinais de alerta como emagrecimento, vômitos recorrentes, disfagia progressiva, presença de sangramento e icterícia, por exemplo, testes não invasivos para pesquisa de infecção por H. pylori podem ser realizados e, quando positivos, demandam tratamento de erradicação da bactéria com uso de antibióticos.
Também prevalente, a síndrome do intestino irritável (SII) é um distúrbio na motilidade intestinal que se caracteriza por episódios de desconforto abdominal, dor, diarreia ou constipação por pelo menos 12 semanas (consecutivas ou não). As causas podem incluir motilidade anormal do intestino durante o jejum; contrações anormais após a ingestão de alimentos gordurosos ou em resposta ao estresse; ansiedade ou depressão; hipersensibilidade dos receptores da parede intestinal à distensão gasosa, conteúdo fecal ou infecções; e desregulação de neurotransmissores como, por exemplo, a serotonina em nível intestinal. “Com alta prevalência e caráter crônico, os sintomas associados à síndrome, apesar de não causarem danos permanentes, exercem considerável impacto sobre a qualidade de vida dos pacientes, refletindo em suas relações pessoais, sociais e laborais, e ocasionando alterações psicológicas, do sono e da atividade sexual”, enfatiza o gastroenterologista Jorge Mugayar Filho.
O diagnóstico é baseado em sintomas, padrão das fezes, frequência evacuatória e ausência de sinais relevantes verificados no exame físico e, se preciso, por meio de análises de sangue, exame de fezes ou na visualização direta do intestino por colonoscopia – inclusive para exclusão de doenças orgânicas do intestino. “O tratamento visa administrar os sintomas através de mudanças na dieta, identificando alimentos que ativem os episódios, e no estilo de vida, além do uso de medicamentos em fases mais intensas e que provoquem muito desconforto. Pode ser necessário incorporar suplementos de fibras e formulações específicas para lidar com sintomas como diarreia e gases, assim como antidepressivos como forma de gerenciar a ansiedade e a depressão como gatilhos da doença funcional”, destaca o médico Jorge Mugayar Filho. O indivíduo pode passar longos períodos sem manifestações clínicas, mas o problema tende a retornar, seja em decorrência de excessos alimentares ou de fatores emocionais.
Outras doenças funcionais intestinais são a constipação (mais comum em mulheres jovens e idosos) e a diarreia. A constipação é caracterizada por evacuações dificultosas ou incompletas, geralmente acompanhadas de sensação de desconforto e distensão abdominal. Na maioria dos casos é idiopática, causada por alimentação pobre em fibras, sedentarismo e baixa ingesta hídrica. “Entretanto, os sintomas podem ser secundários a distúrbios intestinais orgânicos, como lesões estruturais do intestino grosso e da região anorretal, uso de medicamentos, doenças metabólicas ou distúrbios neurológicos”, adverte a gastroenterologista Maria do Carmo Friche Passos. Já a diarreia funcional é definida pelo aumento do volume e número de evacuações e diminuição da consistência das fezes, persistentes por mais de três semanas. Como não existe lesão orgânica no intestino, a causa pode estar associada ao consumo de certos alimentos e medicamentos.
Outras manifestações
Além das disfunções mais comuns, a literatura científica descreve várias outras manifestações, como disfagia funcional (dificuldade de deglutição), dor torácica de origem esofagiana, pirose funcional (queimação ou desconforto retroesternal), síndrome da dor abdominal funcional, náuseas e vômitos crônicos, distúrbios da vesícula biliar e do esfíncter de Oddi, incontinência fecal funcional, dor anorretal e distúrbios funcionais de defecação, que também precisam ser investigadas por um especialista para chegar ao diagnóstico correto. O gastroenterologista Jorge Mugayar Filho comenta que alguns distúrbios funcionais são específicos da fase pediátrica. “Entre os neonatos e crianças até quatro anos de idade observa-se regurgitação do lactente, síndromes da ruminação infantil e dos vômitos cíclicos, cólica do lactente, diarreia, disquesia do lactente (evacuação desordenada) e constipação. Já nas crianças maiores e adolescentes podem ocorrer vômitos e aerofagia, que é a excessiva e inadequada deglutição de ar; e distúrbios funcionais relacionados à dor, constipação e incontinência fecal”, orienta.