Crônicas e recidivas, as doenças inflamatórias intestinais (DII) – doença de Crohn e retocolite ulcerativa – acometem cerca de 5 milhões de pessoas no mundo. No Brasil, estima-se que a prevalência de mais de 200 mil habitantes atendidos no sistema público de saúde, com maior concentração nas regiões Sul e Sudeste. Imunomediadas e de etiologia multifatorial, essas enfermidades são de difícil diagnóstico, demandam tratamento individualizado e impactam negativamente a qualidade de vida, a depender do grau e local afetado. Até pouco tempo, as DII acometiam principalmente jovens em idade ativa. Nos últimos anos, houve uma explosão de casos em todas as faixas etárias, com aumento entre crianças e idosos.
As DII podem ser ocasionadas por fator genético, fator ambiental, excesso de radiação, deficiência no sistema imunológico, mudança no padrão alimentar com o consumo exagerado de alimentos industrializados, açúcar e álcool, que causam desequilíbrio na microbiota intestinal (leia mais em Microbiota & Probióticos), e pelo uso abusivo de antibióticos durante a infância. “Outros fatores como sedentarismo, tabagismo, estresse e transtornos depressivos podem ser gatilhos para o aumento dos sintomas”, pontua a médica gastroenterologista Marta Brenner Machado, presidente da Associação Brasileira de Colite Ulcerativa e Doença de Crohn (ABCD) e coordenadora do Ambulatório de Doenças Inflamatórias Intestinais do Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Com manifestações clínicas muito semelhantes, as DII se diferem de acordo com a área afetada. Na doença de Crohn, a inflamação é transmural e pode ocorrer em qualquer segmento do trato gastrointestinal – da boca ao ânus –, sendo mais comum no final do intestino delgado (íleo terminal), intestino grosso e perianal com formação de fístulas. Já na retocolite ulcerativa, apenas o intestino grosso é acometido, atingindo preferencialmente a mucosa que reveste o cólon e o reto. “Estima-se que entre 10% e 15% das pessoas com DII tenham colite não classificada, mesmo após exames clínicos e de imagem. Inúmeros estudos apontam que a qualidade de vida dos pacientes pode ficar muito prejudicada, podendo trazer complicações em médio e longo prazo como anemia, desnutrição e atraso de crescimento, assim como implicações psicossociais que incluem isolamento, depressão e ansiedade”, descreve o médico coloproctologista Cláudio Saddy Rodrigues Coy, professor titular de Coloproctologia e diretor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp), em São Paulo.
Os sintomas mais importantes são a alteração do hábito intestinal com diarreia, presença de produtos patológicos nas fezes – como sangue e muco –, dor abdominal muito frequente, quadros de distensão abdominal, emagrecimento, náuseas e vômito. “De 20% a 40% dos pacientes também apresentam manifestações extraintestinais na pele, nos olhos, no fígado, nos rins, na coluna, nas articulações e nos ossos”, pontua a médica gastroenterologista Marta Brenner Machado, ao acrescentar que pacientes pediátricos com qualquer DII podem apresentar, ainda, problemas de crescimento e desenvolvimento.
Diagnóstico desafiador
Uma série de fatores precisa ser observada para a identificação assertiva das DII. O diagnóstico parte da anamnese e de exame físico cuidadoso para investigação dos sintomas, intensidade e período que se estendem, mudanças no hábito intestinal e febre. Alguns indicadores de inflamação, desnutrição e anemia são determinados por exames de sangue, mas a investigação também pode incluir análise hepática, marcadores inflamatórios (como a velocidade de hemossedimentação e a proteína C-reativa), e biomarcadores como a calprotectina fecal. Ileocolonoscopia e endoscopia do intestino delgado com estudo histopatológico também são fundamentais para o correto diagnóstico. “Exames radiológicos como tomografia, ressonância magnética, ecografia com doppler colorido e cápsula endoscópica fazem parte do arsenal utilizado no diagnóstico”, informa a médica Marta Brenner Machado.
O tratamento é individualizado de acordo com a manifestação, extensão dos sintomas e gravidade. A maioria dos pacientes é tratada com medicações que inibem a inflamação (nunca usar anti-inflamatórios comuns, que pioram as doenças), imunossupressores e, em alguns casos, antibióticos. “Muitos medicamentos, a maioria disponível no SUS, podem ajudar a reduzir a inflamação e aliviar os sintomas, mantendo a doença em remissão. Entre as classes prescritas estão aminossalicilatos, corticosteroides, imunossupressores, agentes biológicos e antibióticos. Alguns medicamentos podem ter efeitos colaterais leves, moderados ou graves, e o médico que acompanha o paciente deverá decidir pela continuidade ou não da medicação, de acordo com essas reações”, detalha o coloproctologista Cláudio Saddy Rodrigues Coy. Alguns pacientes não respondem aos fármacos e evoluem com complicações, a exemplo de perfuração intestinal, fístulas, abscessos, estenoses e neoplasias, que exigem intervenção cirúrgica para fazer desde a limpeza da região afetada ou drenagem até a retirada do segmento intestinal inflamado.
A médica Marta Brenner Machado acentua que, embora não seja possível curar as DII, os sintomas são minimizados com tratamento adequado e, assim, haverá menor impacto na qualidade de vida do paciente. Os grupos de apoio também são muito importantes. “Ao conversar com outras pessoas que passam pela mesma situação, os pacientes podem compartilhar experiências e dúvidas para um aprendizado de convivência com a doença e para entender que não estão sozinhos nessa caminhada”, argumenta. O acompanhamento dos pacientes demanda consultas periódicas que podem ser feitas em centros especializados e ambulatórios – a maioria em hospitais universitários – que oferecem atendimento multidisciplinar.