O convívio diário com sofrimento, enfermidades, situações traumáticas e perdas faz parte do cotidiano de muitos profissionais da saúde, especialmente médicos e enfermeiros. Diante de um cenário de dor, esses indivíduos podem ser afetados pela fadiga por compaixão, uma condição de exaustão caracterizada por problemas físicos, psíquicos e sociais. Ainda pouco conhecido no Brasil, esse fenômeno também pode ser observado em outros profissionais da área hospitalar, como voluntários, equipe de limpeza, segurança e alimentação. Veterinários e biólogos que vivenciam o sofrimento animal, empregados do sistema carcerário, policiais, bombeiros e até mesmo jornalistas e fotógrafos que trabalham em áreas de conflitos também são parte da lista de pessoas que correm o risco de desenvolver a síndrome. Até mesmo quem cuida de um familiar está sujeito a ter esta fadiga, porque o nível de empatia e envolvimento é extremamente alto e sem pausa.
Entretanto, a fadiga por compaixão atinge especialmente os profissionais da saúde pelo fato de o ambiente hospitalar, por si só, ser considerado insalubre em razão dos diversos riscos físicos e psicossociais associados. Desta forma, é frequente o diagnóstico de problemas como depressão, angústia, estresse, cansaço físico, dificuldades com a memória e doenças osteoarticulares relacionadas ao trabalho de médicos e da equipe de Enfermagem. “Além disso, muitos sofrem com condições de trabalho que demandam múltiplas funções, superlotação hospitalar e turnos ampliados. Esses fatores ficam ainda mais potencializados com a vivência diária com a dor, o sofrimento e a morte de pacientes”, acentua o psicólogo Kennyston Lago, doutor em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações e autor do livro Fadiga por compaixão: O sofrimento dos profissionais em saúde.
A professora doutora Samantha Mucci, psicóloga do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina (Unifesp-EPM), acrescenta que a fadiga por compaixão ainda não é reconhecida como uma condição médica específica como, por exemplo, a síndrome de Burnout. Entretanto, causa exaustão emocional e esgotamento devido ao estresse crônico a que o profissional é exposto no trabalho, o que interfere diretamente no bem-estar, na saúde mental e na capacidade funcional. “O profissional passa a sentir um cansaço crônico, uma certa irritabilidade, dificuldade de concentração, desesperança, alteração do sono e do apetite. Há um sentimento de esgotamento geral pela alta demanda emocional”, pontua.
Os sintomas depressivos e a dificuldade em realizar as tarefas que antes geravam prazer e satisfação podem levar esses indivíduos a um isolamento social ou ao abuso de substâncias, na tentativa de seguirem ‘funcionando’ – quadros que geram um importante prejuízo nas relações interpessoais. “A pessoa com fadiga por compaixão também passa a ter sintomas físicos associados ao sistema imunológico, a exemplo de problemas gastrointestinais, cefaleia, dores no corpo e alergias. É fundamental que esta condição seja mais conhecida e tratada adequadamente para evitar o agravamento do estado de saúde desses profissionais”, orienta a psicóloga Samantha Mucci.
Em geral, os profissionais da saúde criam vínculos com os pacientes e familiares, oferecendo uma assistência humanizada e acolhedora. No entanto, ao sofrer com o agravamento ou a perda da pessoa assistida, muitas vezes podem acreditar que a morte é um fracasso pessoal. Para a psicóloga, esse sofrimento precisa ser compartilhado e elaborado, pois, muitas vezes, não é permitido que o profissional da saúde reconheça os sentimentos de luto em relação ao paciente. “Ao não poder vivenciar esse luto, essa condição se soma a outras que também não foram ditas, vistas e ressignificadas. São sentimentos de culpa, dor da perda, impotência e tristeza que se acumulam e trazem mais dor ao profissional, ao se aproximar de outro paciente em terminalidade. Esse ciclo precisa ser rompido e é importante conversar com colegas, supervisores e terapeutas para que o processo de luto seja vivenciado”, ensina.
Como a fadiga por compaixão é um processo que pode demorar meses ou anos para se manifestar, o monitoramento da saúde dos profissionais é fundamental, uma vez que a banalização do sofrimento e o desgaste mental comprometem a qualidade da assistência prestada e evoluem para quadros emocionais e de saúde mais complicados. Assim, a prevenção deve começar ainda durante a formação acadêmica, para que o indivíduo esteja preparado para as situações que enfrentará. “As instituições de ensino precisam, durante a especialização, trabalhar emocionalmente o futuro profissional com estratégias relacionadas às relações interpessoais e habilidades socioemocionais como forma de prevenção”, ensina o psicólogo Randolfo dos Santos Junior, professor adjunto e orientador do Programa de Mestrado em Psicologia e Saúde da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP).
Comprovações – O estudo ‘Fadiga por compaixão e saúde mental de profissionais em ambiente hospitalar’, desenvolvido na FAMERP e publicado na Revista Brasileira de Qualidade de Vida, investigou a ocorrência da fadiga em 67 profissionais de um hospital geral de alta complexidade do interior de São Paulo, e constatou correlações com indicadores de ansiedade, depressão e Burnout. Segundo os autores, esses fatores levam as pessoas a mudarem de profissão ou abandonarem o emprego, além de desencadear queda na qualidade do trabalho, absenteísmo e rotatividade de profissionais, com prejuízos financeiros também para as instituições de saúde.
Como estratégia, muitos profissionais tentam se adequar à situação desfavorável e adotam o distanciamento em relação aos pacientes. “Esse afastamento pode até amenizar o impacto das experiências, mas deteriora a capacidade de atuação do profissional da saúde que acaba perdendo uma das ferramentas mais essenciais no processo de ajuda, que é o vínculo empático”, acentua psicólogo Kennyston Lago. Para ajudar na saúde mental desses profissionais, a gestão hospitalar pode criar intervenções que previnam ou reduzam o estresse laboral por meio de ações cognitivo-comportamentais para mudanças em relação a como pensam, sentem e se comportam em situações estressantes. Entre as condutas estão exercícios de meditação e acompanhamento psicológico.
Cuidar bem de quem cuida
O profissional da saúde precisa estar atento às próprias alterações de comportamento e, caso apresente sintomas ansiosos e/ou depressivos por duas ou mais semanas – tanto físicos quanto emocionais –, deve buscar apoio. A psicóloga Samantha Mucci enfatiza que as práticas de autocuidado e o diálogo aberto com os colegas de trabalho são fundamentais para evitar a fadiga por compaixão. “Além disso, os profissionais precisam ter o poder de vivenciar as dores e viver intensamente, pois a morte é inevitável para todos nós”, orienta. Algumas pesquisas identificaram que profissionais com rede de apoio de família e amigos e que possuem uma boa relação com a equipe de trabalho estão mais protegidos. O psicólogo Randolfo dos Santos Junior lembra que, além de relacionamentos sociais, a atividade física é um fator potencial de proteção à fadiga por compaixão, reforçando que as boas práticas em diversas esferas e os hábitos saudáveis são a chave para diminuir as diferentes doenças clínicas e psicológicas no ambiente de trabalho. •