O reconhecimento do papel da microbiota intestinal na saúde e na determinação de doenças trouxe a expectativa de que sua modulação poderia ser uma ação preventiva ou terapêutica. Nessa linha, abordagens com dietas específicas, suplementos dietéticos, prebióticos, probióticos, posbióticos e até mesmo transplante de microbiota fecal com emprego de parcelas do próprio microbioma vêm sendo avaliadas. No entanto, é consenso na literatura que os primeiros 1.000 dias de vida são fundamentais para a modulação da microbiota. E, embora ainda se preconize que o parto vaginal é melhor para a colonização intestinal do recém-nascido, já há estudos mostrando que o leite humano é o fator mais importante. Isso porque é uma fonte de bactérias probióticas e compostos prebióticos para o intestino do bebê, como os oligossacarídeos que não são digeridos pelo intestino humano e aumentam a população de bactérias benéficas. Consequentemente, a microbiota intestinal de neonatos fica dominada por bifidobactérias e lactobacilos – espécies consideradas fundamentais para a modulação de uma microbiota saudável.
“Sempre vimos na literatura que o tipo de parto é um preditor da microbiota devido a essa primeira carga bacteriana que a criança recebe. No entanto, estudos mais recentes têm mostrado claramente que é a amamentação que modula essa microbiota e, portanto, se sobrepõe ao parto em importância”, enfatiza a pesquisadora Carla Taddei, professora associada do Laboratório de Microbiologia Molecular do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (HU-USP). A pesquisadora, que tem como principal linha de pesquisa a microbiota humana e sua interação com o hospedeiro na saúde e na doença, participou de um estudo realizado na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que conseguiu caracterizar os oligossacarídeos do leite materno pela primeira vez no Brasil.
No estudo ‘Comparação da microbiota intestinal de bebês nascidos por via vaginal e cesariana amamentados exclusivamente por mães que secretam oligossacarídeos fucosilados α1-2 no leite materno’, a pesquisadora Karina Tonon caracterizou os oligossacarídeos das mães e, por meio de amostras de fezes dos recém-nascidos, avaliou o microbioma intestinal dos bebês. O resultado mostrou que a microbiota de mães com maior diversidade dos oligossacarídeos era muito parecida com a microbiota dos filhos, independentemente do tipo de parto. Os oligossacarídeos compreendem a terceira maior fração sólida do leite humano, depois da lactose e dos lipídeos, contendo mais de 150 moléculas diferentes com uma concentração total entre 5 e 20g/L no leite humano maduro.
A professora Carla Taddei explica que o oligossacarídeo do leite materno funciona como um prebiótico que alimenta as bactérias presentes no intestino da criança e garante uma proteção para o muco que reveste o intestino – que é produzido na medida em que o intestino do bebê vai sendo maturado. Por não serem digeridos, os oligossacarídeos chegam intactos ao cólon onde também atuam como antimicrobianos, previnem a ligação de patógenos e promovem a função de barreira intestinal. “O muco que reveste o intestino desses bebês tem os mesmos carboidratos do leite materno e a bactéria patogênica gruda nesse carboidrato e é eliminada pelas fezes, evitando uma possível infecção. Portanto, o oligossacarídeo do leite materno é um componente protetor da mucosa intestinal do bebê”, garante.
No estudo, os pesquisadores compararam a microbiota fecal de 48 lactentes nascidos a termo, saudáveis e exclusivamente amamentados por suas mães, de acordo com o modo de nascimento. Crianças nascidas de cesariana apresentaram menor abundância de Bacteroides, menor prevalência de Bifidobacterium longum e maior abundância de Akkermansia e Kluyvera. A composição geral da microbiota não foi diferente entre bebês nascidos de cesarianas e parto normal amamentados por suas mães. “Bifidobacterium e Bacteroides são as únicas bactérias intestinais que conseguem metabolizar o oligossacarídeo do leite humano. O Bifidobacterium quebra e disponibiliza metabólitos para outras bactérias e, assim, regula a microbiota. O mesmo ocorre com o leite humano pasteurizado, pois a pasteurização só mata bactérias patogênicas e não degrada o oligossacarídeo”, reforça a professora Carla Taddei. O trabalho foi orientado pelo professor Mauro Moraes, da Unifesp, e publicado na revista PLoS One em 2021.
Prematuros
Outro trabalho coordenado pela pesquisadora Carla Taddei foi desenvolvido com prematuros e mostrou que as crianças de UTI neonatal que tomavam leite materno na primeira semana tinham menos tempo de internação, independentemente de receberem leite da mãe ou leite pasteurizado do Banco de Leite do hospital. “É muito importante o papel do leite humano para a modulação da microbiota, mesmo para crianças saudáveis. Está comprovado cientificamente que a amamentação dá resiliência para a microbiota e, mesmo que a criança precise de antibiótico ou que ocorra alguma questão externa, a amamentação vai garantir a estrutura daquela comunidade microbiana”, assegura.