O intestino abriga o maior exército de células imunitárias do corpo humano e a microbiota comensal desempenha um papel fundamental na educação do sistema imunitário, que ocorre no início da vida. Os microrganismos e seus metabólitos modulam as respostas imunes através da indução de células imunitárias, vias de sinalização e mediadores inflamatórios. Em contrapartida, componentes dietéticos, infecções gastrointestinais, medicamentos, estresse e tabagismo, entre outros gatilhos ambientais, podem provocar uma disfunção imunitária associada à disbiose em indivíduos geneticamente suscetíveis. Inúmeros pesquisadores investigam a interação da microbiota com o sistema imune. Um desses estudos avalia a microbiota oral e intestinal e a correlação com a resposta imune em pacientes submetidos ao transplante alogênico de medula óssea ou células-tronco hematopoéticas devido, principalmente, a doenças onco-hematológicas como leucemia, linfoma, mieloma múltiplo e anemia aplástica.
O estudo multicêntrico envolve vários centros transplantadores no Brasil, como o Hospital de Base de São José do Rio Preto, o Hospital de Amor de Barretos, o Hospital Amaral Carvalho de Jaú – todos no interior de São Paulo –, assim como o hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo – BP. Além disso, tem colaboração internacional com o professor Nelson Chao, hematologista da Duke University, e com o professor Alessio Fasano, do Massachusetts General Hospital da Harvard University, em Boston, ambos nos Estados Unidos. O carro-chefe está sob responsabilidade do grupo coordenado pela imunologista Gislane Lelis Vilela de Oliveira, professora doutora do Departamento de Ciências Químicas e Biológicas – Setor de Microbiologia e Imunologia do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (UNESP). O estudo tem, até o momento, 150 pacientes – mas a meta é chegar a 400 em cinco anos.
O objetivo é fazer um follow-up de pacientes submetidos a esse tipo de transplante para avaliar como a microbiota se comporta antes e depois do procedimento. Além disso, os pesquisadores querem investigar se a microbiota tem alguma relação com o desenvolvimento da doença do enxerto contra o hospedeiro, uma enfermidade imunomediada em que o sistema imune reage contra os órgãos do receptor. “A medula óssea dá origem a todas as células do sistema imune. O enxerto é essa medula que foi enxertada ou as células-tronco hematopoéticas que foram infundidas e que, algumas vezes, se voltam contra as células do paciente receptor”, ensina a professora.
A pesquisa envolve análises pós-transplante, no período de 30, 60, 100 e 180 dias, além de avaliações desde quando os pacientes receberam o diagnóstico de doença do enxerto contra o hospedeiro. Os pesquisadores querem entender, por exemplo, se quem desenvolve a doença do enxerto contra o hospedeiro já apresentava alterações significativas na microbiota desde a doença de base e, neste caso, o estudo poderá fornecer marcadores de predição. Outra pergunta é se esse microbioma não retorna às condições de eubiose ao longo do pós-transplante e favorece o desenvolvimento dessa doença próximo aos 100 ou 180 dias do procedimento. Com os estudos, o grupo avalia qual poderia ser a aplicação da microbiota oral e intestinal como um marcador dessa resposta clínica no futuro, e se haveria alguma intervenção que pudesse ser feita. “Uma das aplicações mais fantásticas da microbiota, hoje em dia, é justamente podermos utilizar como um possível marcador de remissão ou recaída”, ressalta a docente.
Sistema Imune
No Yakult International Symposia, a professora Gislane Lelis Vilela de Oliveira vai abordar como os probióticos podem interagir com o sistema imune, não só por meio da microbiota residente, mas também como vai estimular as células da imunidade de mucosas. “Vários benefícios dos probióticos já foram demonstrados, não só para a saúde gastrointestinal. Entretanto, temos de pensar no que ocorre na mucosa do intestino uma vez que há um reflexo sistêmico. Com isso, os probióticos podem ter um caráter imunorregulador ou imunoestimulante”, explica. Dessa forma, vai favorecer uma imunidade de mucosa mais regulada, aumentando a expressão das ocludinas e claudinas que fortalecem a junção entre as células epiteliais e diminuindo a permeabilidade intestinal (ou leaky gut).
“Toda vez que falo de permeabilidade lembro do transplante, pois o regime de condicionamento pré-transplante maltrata muito essa barreira intestinal, quebra as tight junctions, aumenta a permeabilidade e acaba elevando as chances de translocação bacteriana. Se pedacinhos desses microrganismos passarem para a circulação porta, depois para a circulação sistêmica, vão levar a uma propensão de maiores infecções nesses pacientes. E alguns probióticos ou pós-bióticos poderiam restaurar a barreira epitelial”, relata. A professora enfatiza que há poucos estudos com probióticos em transplantados porque é preciso ter muita cautela, uma vez que são imunossuprimidos. Por isso, no futuro é preciso pensar em alguma modulação nesses pacientes que não têm uma resposta clínica muito boa. E os probióticos (ou pós-bióticos), quando interagem com a microbiota residente, podem promover essa modulação.
Pós-bióticos como opção às bactérias vivas
Compostos por pequenos fragmentos de um microrganismo, os pós-bióticos são subprodutos da microbiota intestinal que poderiam ser usados como opção para compensar a falta de indicação de probióticos – que são microrganismos vivos. Atualmente, alguns trabalhos com Akkermansia muciniphila pasteurizada, por exemplo, têm mostrado que podem ocorrer os mesmos benefícios do uso da bactéria viva. “Muitos trabalhos pré-clínicos em modelos animais estão testando tanto probióticos quanto pós-bióticos. Nesse contexto do transplante, precisamos ter uma cautela muito grande, mas alguns ensaios clínicos com os probióticos já têm sido feitos”, relata a professora. No caso do estudo da UNESP, o ensaio vai começar em camundongos – tanto com probióticos quanto com pós-bióticos. Outra possibilidade é testar o butirato, ácido graxo de cadeia curta envolvido na indução de células T reguladoras e citocinas anti-inflamatórias.