Silenciosa, a cirrose é uma doença crônica e progressiva que acomete o fígado, um órgão vital para o funcionamento do corpo humano. A enfermidade é um grave problema de saúde pública global e a causa de milhares de mortes anuais, gerando grandes custos para o sistema de saúde em todo o mundo. No Brasil, de 2019 a 2022 foram registrados 47.444 óbitos por cirrose hepática, segundo o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), disponível no DATASUS. A maior prevalência de mortes ocorreu entre homens (71,01%) e em indivíduos com idades entre 55 e 74 anos. Caracterizada pela substituição progressiva do tecido hepático saudável por tecido cicatricial (fibrose) não funcional decorrente de um processo inflamatório ou dano persistente, a condição impede o fígado de funcionar adequadamente levando a uma série de complicações graves. Entre os exemplos estão acúmulo de líquido na cavidade abdominal (ascite), hemorragia no trato digestivo, hipertensão portal e câncer, que podem evoluir para a falência total do órgão.
Considerado o laboratório central do corpo humano, o fígado é um órgão vital e responsável por uma série de funções. Ao atuar em conjunto com outros órgãos para a manutenção de funções fisiológicas, auxilia na digestão das gorduras pela produção de bile, armazena vitaminas e minerais essenciais, extrai e armazena glicose gerando energia. Além disso, o fígado realiza o metabolismo de toxinas, medicamentos e substâncias absorvidas pelo intestino; regula a coagulação sanguínea e participa dos mecanismos de defesa do organismo. A gastroenterologista e hepatologista Geisa Perez Medina Gomide, coordenadora do Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), explica que todas as funções do fígado são realizadas por hepatócitos, que são células organizadas em lóbulos hexagonais. “Quando o órgão é danificado por qualquer motivo, alguns hepatócitos morrem. Mas, devido à sua capacidade de regeneração, aqueles que restam se multiplicam e restauram a arquitetura dos lóbulos”, detalha.
Entretanto, quando o fígado é afetado continuamente por um fator agressivo que o leva ao limite, seu poder de regeneração pode ser comprometido. Neste caso, a área danificada passa a ser preenchida por tecido cicatricial (fibroso) e pela formação de nódulos, o que desorganiza a arquitetura original do órgão. Assim, a proliferação do tecido fibroso leva à perda do tecido funcional do fígado, que não pode ser recuperada. Além de interferir na função hepática, essa fibrose pode bloquear o fluxo sanguíneo da veia porta – que transporta sangue do intestino para o fígado –, resultando em hipertensão portal nas veias do estômago, esôfago, baço ou reto. “À medida que a fibrose progride e os nódulos aumentam, o órgão se retrai e fica mais rígido, o que se traduz pelo quadro de cirrose”, descreve a médica. Portanto, por ser o estágio final de muitas condições crônicas do fígado, a cirrose é um processo lento e silencioso resultante de uma doença que se desenvolve ao longo de muitos anos.
Apesar de ser popularmente associada ao alto consumo de álcool, a doença atualmente tem como principais causas as hepatites virais e a esteatose hepática (gordura no fígado) em decorrência do crescente aumento do sobrepeso e da obesidade. O médico gastroenterologista e hepatologista Alberto Farias, professor titular do Departamento de Gastroenterologia e Hepatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) acrescenta que, nos últimos anos, tem crescido o número de pessoas acometidas por cirrose secundária à esteatose hepática, que está relacionada principalmente à obesidade. “Esses quadros são impulsionados pelo estilo de vida sedentário e por padrões de alimentação inadequados constituídos pelo alto consumo de alimentos ultraprocessados, ricos em gordura, açúcar e aditivos químicos”, acentua. Além disso, doenças da tireoide e síndrome metabólica podem contribuir para a esteatose hepática e, consequentemente, para o desenvolvimento da cirrose.
Sinais
Os sintomas da cirrose dependem, em grande parte, da fase em que a doença se encontra. “Os estágios iniciais – fase compensada – geralmente são assintomáticos. Mas, conforme a doença progride, surgem sinais como perda de peso, fraqueza ou anorexia. “Na maioria dos casos, os sintomas se manifestam tardiamente, quando a fase já está descompensada e a cirrose já está em estágio muito avançado e com quadro irreversível”, observa o médico gastroenterologista Hugo Cheinquer, do Serviço de Gastroenterologia do Hospital das Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Na fase descompensada, o paciente pode apresentar icterícia na esclera, na pele e nas mucosas; inchaço abdominal provocado pela retenção de líquidos (ascite); edemas em pernas, tornozelos e pés; prurido e eritema palmar. Também ocorrem perda de função cerebral (encefalopatia hepática), que surge quando o fígado perde a capacidade de remover as toxinas do sangue; insuficiência renal (síndrome hepatorrenal); hemorragia digestiva alta varicosa e carcinoma hepatocelular em estágios mais avançados, entre outros.