Publicado em outubro de 2024 na revista The Lancet, o artigo ‘Global estimation of dietary micronutrient inadequacies: a modelling analysis’, mostrou que a ingestão inadequada de micronutrientes como ferro, zinco, vitamina A, iodo e folato, entre outros, e as deficiências relacionadas – fenômeno conhecido como fome oculta – são um grande desafio para a saúde pública global. Essa condição de carência nutricional prevalente, crescente e silenciosa ocorre quando a dieta é deficiente em um ou mais dos 26 micronutrientes essenciais para o adequado funcionamento do organismo, ou seja, vitaminas e minerais encontrados nos alimentos. Quando não identificada precocemente, essa deficiência nutricional pode resultar em problemas significativos de saúde que contribuem para uma grande carga de morbidade e mortalidade. Em decorrência de inadequações na qualidade da alimentação, essa forma de desnutrição pode ocorrer inclusive em indivíduos com excesso de peso, obesidade e mesmo naqueles que se consideram saudáveis.
Com base nas estimativas de ingestão de nutrientes dos alimentos (excluindo fortificação e suplementação), os autores do artigo estimaram as inadequações de ingestão de 15 micronutrientes em 34 grupos subnacionais de idade-sexo, em 185 países. Os resultados mostraram que mais de 5 bilhões de pessoas não consomem iodo suficiente (68% da população global), vitamina E (67%) e cálcio (66%). Mais de 4 bilhões de indivíduos não consomem ferro suficiente (65%), riboflavina (55%), folato (54%) e vitamina C (53%). “A deficiência de ferro é a causa mais comum de anemia, levando à cognição prejudicada e a resultados adversos na gravidez. A deficiência de vitamina A é a principal causa de cegueira evitável em todo o mundo, afetando principalmente crianças e mulheres grávidas”, argumentam os autores. Vitamina A e zinco têm um papel crucial na imunidade, especialmente para populações que enfrentam uma alta carga de doenças infecciosas, enquanto o folato é necessário no início da gravidez para reduzir o risco de natimortos e defeitos do tubo neural. Já o iodo é essencial para mulheres grávidas e lactantes devido ao seu papel no desenvolvimento cognitivo fetal e infantil.
A fome clássica é visceral, ou seja, a falta de comida leva à sensação de estômago vazio e é suprida através da ingestão de macronutrientes como carboidratos, proteínas e gorduras. Já a fome oculta diz respeito aos micronutrientes, cuja ingestão inadequada não leva à sensação de fome – daí o nome adotado. “Os micronutrientes são nutrientes protetores e apresentam algumas características, ou seja, são necessários em pequenas quantidades, são essenciais (o organismo não produz, devendo ser recebidos por meio da alimentação), atuam no metabolismo e no funcionamento celular, são ligados a compostos orgânicos e se constituem em componentes estruturais e com funções específicas. Portanto, são indispensáveis para o bom funcionamento do organismo”, afirma a doutora em Nutrição Olga Maria Silverio Amancio, professora associada livre docente de Nutrologia do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), assessora da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) na área de Alimentos e secretária geral da Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição (SBAN).
De início, apesar de as alterações fisiológicas serem mínimas, a fome oculta pode ser descrita como uma fase silenciosa que antecede o surgimento dos sinais clínicos de carência nutricional, mesmo que não esteja associada a quadros clássicos de desnutrição. “Em médio e longo prazos pode causar prejuízos à saúde”, observa a professora Olga Maria Silverio Amancio. Assim, a fome oculta pode comprometer etapas do processo metabólico levando a alterações no sistema imunológico, nas defesas antioxidantes e no desenvolvimento físico e cognitivo. Além disso, a carência de micronutrientes pode ser um fator agravante de doenças cardiovasculares, hipertensão arterial, diabetes mellitus, dislipidemia, obesidade, osteoporose e alguns tipos de câncer, entre outras enfermidades.
Ainda que a fome oculta possa se caracterizar pela falta de um micronutriente específico, tende a ocorrer de forma combinada a outras carências. “As deficiências de ferro e vitamina A, por exemplo, são muito sérias no público materno-infantil. Além do risco aumentado de causar anemia ferropriva, essa condição pode afetar o crescimento, o desenvolvimento, a aprendizagem, o sistema imunológico e a capacidade física e laboral. Na gestação, aumenta os riscos de complicações perinatais tanto para a gestante quanto para o recém-nascido, assim como a mortalidade materna”, descreve a doutora em Ciência e Nutrição Manuela Dolinsky, professora associada da Faculdade de Nutrição da Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro do Conselho Federal de Nutrição (CFN). Na população adulta, especialmente entre os idosos, a carência em cálcio, ferro, zinco e vitaminas B6, B12 e D é a mais prevalente.
Assintomático
Pela característica assintomática, na grande maioria dos casos o problema só é identificado quando a deficiência evolui para um quadro de doença. “O diagnóstico da fome oculta envolve avaliação física, análise da alimentação e exames laboratoriais para verificar os níveis de vitaminas e minerais no organismo. Uma vez identificada, deve ser tratada com medicamentos associados e reeducação alimentar, que é o padrão ouro para prevenir e reparar a carência de nutrientes”, ensina a professora Olga Maria Silverio Amancio. Entre as recomendações está o consumo variado de alimentos como frutas, vegetais, hortaliças, grãos integrais, proteínas magras e gorduras saudáveis. A redução de alimentos ricos em açúcares e gorduras e, sobretudo, uma educação nutricional contínua com orientações sobre escolhas saudáveis e técnicas de preparo adequadas para preservar nutrientes, também são importantes. A depender do caso, a suplementação deve ser prescrita para adequação dos níveis de vitaminas e/ou minerais deficitários.