Frequentemente usada como tratamento curativo para o câncer de próstata ou como adjuvante de resgate (pós-prostatectomia), a radioterapia (RT) oferece excelentes resultados. No entanto, muitos pacientes apresentam efeitos colaterais gastrointestinais significativos precoces e/ou de longo prazo devido à irradiação de tecidos intestinais saudáveis ao redor do alvo do tumor. Com o objetivo de identificar pacientes com fatores de risco que levem a esse quadro, um estudo de coorte observacional investigou o papel da microbiota intestinal no desenvolvimento da toxicidade gastrointestinal induzida por radioterapia.
O estudo caracterizou amostras de 244 pacientes com câncer de próstata para avaliar a toxicidade gastrointestinal por radioterapia. De acordo com os autores, todos os participantes foram tratados com radioterapia de alta dose (intenção curativa, exclusiva ou pós-prostatectomia) por hipofracionamento ou fracionamento convencional, seguindo o padrão terapêutico individual. A toxicidade gastrointestinal foi avaliada semanalmente usando Critérios de Terminologia Comum para Eventos Adversos (CTCAE, na sigla em inglês).
“A microbiota intestinal dos pacientes foi quantificada a partir das amostras fecais basais, usando a tecnologia de sequenciamento do gene 16S rRNA e o pipeline metagenômico Ion Reporter”, descrevem os autores. Além disso, foram utilizadas técnicas estatísticas e ferramentas computacionais e de aprendizado de máquina. O objetivo era extrair, caracterizar funcionalmente e prever as principais características das comunidades bacterianas dos pacientes que desenvolveram toxicidade gastrointestinal aguda.
Principais evidências
Entre os achados, a pesquisa apontou que uma baixa diversidade da microbiota intestinal é um indicador de risco clínico para o início dos efeitos colaterais gastrointestinais induzidos por radioterapia. Além disso, a descoberta de uma menor alfa-diversidade da microbiota intestinal central (composta por 18 gêneros com abundância relativa ≥2% em ≥10% da coorte) foi significativamente associada à toxicidade. O dado sugere que a diversidade pode ser estimada de forma robusta a partir de um subconjunto do microbioma.
Paralelamente, uma análise de agrupamento não supervisionada da composição da microbiota central identificou um subconjunto de pacientes com maiores taxas de toxicidade. A caracterização funcional das comunidades bacterianas desses pacientes de alto risco apontou para uma seleção de espécies adaptadas para lidar com o estresse oxidativo e a escassez de fosfato. “Isso sugere que a composição da microbiota pode refletir um ambiente hospedeiro caracterizado por níveis aumentados de espécies reativas de oxigênio, predispondo respostas pró-inflamatórias prolongadas e, consequentemente, a toxicidade gastrointestinal induzida por radiação.
Ao investigar a associação entre toxicidade gastrointestinal e os fatores de risco dosimétricos/específicos do paciente, os pesquisadores não encontraram relações estatisticamente significativas entre doses retais e morbidade gastrointestinal aguda. Isso também foi observado entre toxicidade e fatores do paciente, a exemplo de idade, Índice de Massa Corporal (IMC), comorbidades, dieta ou tabagismo. De acordo com os autores, os pacientes que usam estatinas (inibidores de HMG-CoA redutase, enzima fundamental na síntese do colesterol) regularmente apresentaram um risco significativamente menor de toxicidade, consistente com os efeitos protetores relatados anteriormente dessa classe de medicamentos.
Árvore MICLIDE
Com base em características composicionais de microbiota de alto risco selecionadas, os pesquisadores desenvolveram uma árvore de decisão clínica, denominada Árvore MICLIDE. Ao categorizar pacientes nas classes de alto/moderado/baixo risco, essa metodologia poderia prever efetivamente o risco de toxicidade com base na abundância relativa dos gêneros Faecalibacterium, Bacteroides, Parabacteroides, Alistipes, Prevotella e Phascolarctobacterium. “A Árvore MICLIDE pode ser diretamente traduzida para a prática clínica para avaliar o risco de toxicidade pré-radioterapia e otimizar o planejamento terapêutico”, avaliam os autores. A MICLIDE poderia sinalizar, por exemplo, restrições de dose de radiação em pacientes com maior risco de toxicidade ou aqueles com maior risco de efeitos colaterais gastrointestinais.
Além disso, poderá auxiliar no design de medidas intervencionistas para manipular a composição bacteriana e melhorar os efeitos colaterais iniciais e tardios, particularmente selecionando pacientes com maior probabilidade de se beneficiarem dessas intervenções. “Dado que 68% da população do estudo recebeu irradiação na região da pelve, a abordagem analítica e o desenvolvimento do modelo de árvore de decisão clínica podem ter aplicabilidade mais ampla a outros tipos de câncer cujo tratamento também é baseado na irradiação do abdômen ou da pelve”, concluem os autores.
As descobertas do estudo são baseadas em associações estatísticas e padrões descobertos pelo uso de técnicas de aprendizado de máquina. Por esse motivo, os autores sugerem que novas pesquisas utilizando outras tecnologias sejam desenvolvidas para melhor elucidar as consequências que uma funcionalidade comunitária alterada pode ter no hospedeiro e em pacientes com alto risco de toxicidade. O artigo ‘Intestinal microbiota composition is predictive of radiotherapy-induced acute gastrointestinal toxicity in prostate cancer patients’ foi publicado em agosto de 2024 na Science Direct.