Alotriofagia, picacismo ou síndrome de pica são designações que soam estranhas e pouco conhecidas pela população em geral. No entanto, todas se referem a um mesmo comportamento alimentar que pode levar indivíduos a consumir em grande volume de objetos sem valor nutricional, ou seja, que não são alimentos. O termo ‘pica’, usado em dois dos nomes que remetem o quadro, faz analogia a um pássaro que é uma espécie de ave que tem o hábito de comer itens não alimentares, assim como a pessoa diagnosticada.
O distúrbio é intrigante e representa um desafio não apenas para as pessoas afetadas como também para os profissionais de saúde. Em geral, manifesta-se em crianças com até 6 anos e pode persistir até a vida adulta. No entanto, é importante ressaltar que nem toda ingestão não alimentar configura-se neste cenário, uma vez que é necessário que o comportamento ocorra pelo menos de uma a duas vezes por mês para receber essa classificação.
“Algumas das substâncias mais comuns que essas pessoas ingerem com frequência são fósforos, cinzas de cigarros, gelo, terra, argila, pedras, papel, cabelos e pelos em geral, palitos de dente, sabão, notas de dinheiro, pasta dental e giz”, afirma o médico psiquiatra Rodrigo Lancelote Alberto, diretor técnico no Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental (CAISM) de Franco da Rocha e no Hospital Estadual de Franco da Rocha. Além das crianças e gestantes, indivíduos diagnosticados com transtornos mentais também podem apresentar características de picacismo.
A causa do picacismo ainda não está totalmente compreendida. Várias teorias sugerem a presença de fatores emocionais e deficiência de nutrientes, como ferro e zinco, como possíveis razões para o consumo de objetos sem valor nutricional. A identificação ainda é considerada bastante delicada e demorada. Além disso, o diagnóstico é difícil devido à recusa que, geralmente, os pacientes têm em falar sobre o assunto. Muitas vezes, há vergonha e medo de julgamento.
O hábito frequente de consumir objetos sem valor nutricional pode afetar significativamente a qualidade de vida e a saúde física e mental dos indivíduos. Ademais, pode ocasionar complicações orgânicas na cavidade oral, como deterioração e quebra de dentes. “Existem ainda riscos gastrointestinais, como obstruções e perfurações, assim como infecções e intoxicações. Em casos mais graves, a substituição da dieta inadequada pode levar à desnutrição”, alerta o médico.
Tratamento
Em geral, o tratamento para a síndrome de pica é abrangente e envolve abordagens nutricional, psicológica, farmacológica e comportamental. De início, é crucial buscar ajuda médica para realizar exames laboratoriais adicionais que identifiquem possíveis deficiências nutricionais. E, a partir disso, realizar ajustes na dieta e, se necessário, suplementação medicamentosa. A avaliação nutricional e os tratamentos psicológicos e psiquiátricos também são essenciais para compreender e abordar as causas subjacentes do comportamento alimentar inadequado.
“Isso porque, junto com o comportamento, existe uma questão social que é importante ressignificar”, afirma o médico. No contexto do atendimento nutricional existe a prescrição de dieta, mas o tratamento vai além, buscando entender o indivíduo como um todo. Para isso, é analisada a relação com a alimentação considerando as emoções, eventuais doenças pré-existentes e o contexto sociocultural em que o paciente está inserido.
A nutricionista Marlucy Lindsey Vieira, da UBS Jardim Nakamura – também gerenciada pelo Centro de Estudos e Pesquisas Dr. João Amorim (CEJAM) em parceria com a Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo – afirma que o tratamento busca ajudar na construção da compreensão individual em relação à comida. “Para isso, auxiliamos no reconhecimento de sensações e emoções associadas à ingestão de determinados alimentos. Nesse processo, a psicologia e a psiquiatria andam conosco”, acrescenta.
O tratamento pode ser desafiador e sempre será adaptado às necessidades de cada paciente. Entretanto, o apoio contínuo, tanto médico como psicossocial, é essencial para ajudar o paciente a superar a condição e promover uma alimentação saudável e segura. Ademais, vale destacar que esse padrão de comportamento não é necessariamente permanente e pode diminuir ou desaparecer com o tempo.