Polpa do dente de leite e o autismo

Entrevista:

Polpa do dente de leite para investigar o TEA

Patrícia Beltrão Braga

Por Adenilde Bringel

O projeto A Fada do Dente surgiu em 2008, idealizado por pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP), com o objetivo de estudar os mecanismos biológicos envolvidos no transtorno do espectro do autismo (TEA). Desde 2009, dentes de leite doados por famílias de crianças autistas e não autistas estão ajudando os pesquisadores a conhecer melhor os mecanismos biológicos envolvidos no TEA. A iniciativa já recebeu cerca de 500 doações de dentes de leite, que foram essenciais para a descoberta de que uma inflamação em células nervosas pode ser uma das causas do TEA. Além disso, os pesquisadores descobriram que gestantes que contraíram zika têm o dobro de chance de ter um filho com TEA.  A neurocientista Patrícia Beltrão Braga, coordenadora do projeto e docente do ICB-USP, conta quais são os próximos passos do grupo. 

 

Como surgiu o projeto A Fada do Dente?

O projeto surgiu em 2008, quando já trabalhávamos com dente de leite para outras pesquisas. Em 2006, o cientista japonês Shinya Yamanaka publicou uma técnica de reprogramação celular que fazia com que as células virassem células embrionárias, como se estivessem voltando no tempo – o que chamamos de células pluripotentes induzidas. Com essa técnica, essas células conseguem se diferenciar em qualquer tecido. No nosso laboratório, começamos a fazer reprogramação com as células da polpa do dente de leite de crianças com TEA para transformá-las em células do sistema nervoso e, assim, estudar e investigar os mecanismos biológicos que estão envolvidos no autismo. É muito importante preservar o background genético da pessoa com autismo, porque é único e muito particular. Se usarmos um modelo animal, não teremos a genética da pessoa com autismo. Mesmo que seja usado um animal transgênico, que tem o mesmo gene mutado do indivíduo com autismo, ele não tem toda a informação genética daquela pessoa. Por isso, passamos a utilizar como modelo de estudo a célula das pessoas que têm autismo, reprogramadas e transformadas em células do cérebro. É uma maneira de acessar essas células do sistema nervoso sem fazer um procedimento invasivo. A vantagem das células da polpa dentária é que o dente de leite cai e não precisamos submeter aquela criança a nenhum procedimento doloroso. Quando o dentinho cai, recebemos a doação. E, a partir dessas células, fazemos toda a nossa mágica no laboratório. 

A partir dessa mágica, o que já foi descoberto a respeito do autismo?

É um procedimento que dá bastante trabalho e demora um tempo grande. E o que conseguimos descobrir – dentre as várias coisas que temos estudado – é que, de fato, as pessoas que têm a forma mais grave, mais severa de autismo, que é o chamado nível três de suporte, têm uma inflamação no sistema nervoso, uma inflamação no cérebro. Existe um tipo de célula do cérebro chamada astrócito, que dá suporte para os neurônios – lembrando que o neurônio é a célula efetora do sistema nervoso que transmite informação. O astrócito é muito importante porque dá suporte para o neurônio sobreviver, traz nutrição para o neurônio e remove produtos metabólicos tóxicos que estão no sistema nervoso. O astrócito tem um papel fundamental e é a célula mais abundante das células da glia.

O que são as células da glia?

Esse nome glia vem de glue, que é cola em inglês. Então, o neurônio cola em cima do astrócito e é o astrócito que dá suporte para ele. Vimos que os neurônios das pessoas com autismo estavam inflamados, produziam moléculas que causavam inflamação no sistema nervoso e, por isso, o funcionamento do sistema nervoso estava alterado se comparado com um sistema nervoso de uma pessoa que não tem autismo. Vimos, por exemplo, que o número de sinapses – que ocorre quando um neurônio joga um estímulo e o outro neurônio recebe – funcionava de maneira diferente, ou seja, que o número de sinapses estava reduzido. Vimos também que um neurotransmissor que é produzido no cérebro estava aumentado e não era removido naturalmente, se acumulando e tornando-se tóxico. Mas, na hora em que colocamos um astrócito de um indivíduo sem autismo com um neurônio de uma pessoa com autismo, esse neurônio resgatou essas funções mostrando que, de fato, é o astrócito da pessoa com autismo que está alterado. Se conseguirmos desenvolver alguma molécula, alguma droga que recupere esse astrócito, talvez seja possível melhorar o funcionamento do neurônio. Trabalhamos, inclusive, usando um fármaco para ver se conseguimos resgatar essa função sem sugerir transplante de células, porque aí teríamos outros problemas. Fizemos isso e conseguimos resgatar o funcionamento do neurônio. Agora, acho que o desafio é encontrar uma droga que chegue ao cérebro. O que temos de descobrir, agora, é qual quantidade tem de ser colocada para que essa pessoa com autismo consiga melhorar algumas funções do neurônio para ter uma melhora na qualidade de vida.

Com essa descoberta, é possível dizer em qual momento da vida da criança acontece essa disfunção do neurônio?

Não! Acho que essa é uma pergunta muito importante, na verdade. O que acreditamos, e que já está na literatura, é que a pessoa nasce com autismo. É alguma alteração que ocorre desde a gestação, durante o neurodesenvolvimento, que vai provocando determinadas alterações. A criança já nasce com autismo e, muitas vezes, dependendo do grau, a família pode demorar um pouco mais a perceber. Algumas pessoas dizem que a criança não era autista, mas ‘ficou autista’, porque alguma coisa aconteceu. Mas não é assim que acontece. Sabemos que a pessoa nasce dentro do que chamamos espectro do autismo, mas, em que momento da gestação as alterações podem ocorrer, ainda não se sabe. Para entendermos isso, teríamos de fazer um estudo de embriologia, o que é muito difícil. Por isso que esse estudo in vitro no laboratório é tão importante, pois, a partir das células embrionárias, ou seja, das células reprogramadas, podemos ir transformando essas células em neurônios e ver em que momento as alterações acontecem. Nós consideramos as células progenitoras neurais também. Isso nos ajuda a entender um pouco mais sobre quais são as células que estão sendo alteradas mais precocemente e o que poderíamos esperar disso. Também temos de considerar que existem fatores ambientais que podem interferir no processo de neurodesenvolvimento durante a gestação. Esses fatores não são os únicos responsáveis, mas podem servir como mais um fator agregador, favorecendo o fenótipo.

“O que já conseguimos descobrir é que as pessoas com a forma mais severa de autismo, que é o nível três, têm uma inflamação no sistema nervoso, uma inflamação no cérebro”

O autismo pode ser considerado um transtorno de origem genética?

Costumamos dizer que o autismo é multifatorial. Temos mais de 1.000 genes que já foram descritos para o autismo e sabemos que, desses mais de 1.000 genes, cerca de 1% é muito importante. Basta uma mutação em um gene desses 1% que a pessoa vai estar no espectro do autismo – é o que chamamos de autismo sindrômico que inclui, por exemplo, algumas síndromes como a Síndrome de Rett, Síndrome do X frágil e Síndrome de Phelan-McDermid. Essas alterações genéticas conhecidas nos fazem entender muita coisa do sistema nervoso também. Já no caso de combinações de genes, parecem existir combinações ‘mais fortes ou mais fracas’, mas que ainda não são bem conhecidas. Por isso que, para alguns, o símbolo do autismo é um quebra-cabeça. O que precisamos entender é o quanto essa genética sozinha é forte o bastante para o fenótipo aparecer, ou quanto essa genética é suscetível, mas não forte o bastante e precisaria de um fator ambiental. São essas combinações que ainda não conhecemos exatamente e que, obviamente, vão ser particulares de cada pessoa. Então, tem muita coisa para se descobrir. O que temos observado no laboratório, além da genética que acompanhamos e estudamos, são os fatores ambientais como as infecções virais que ocorrem durante a gestação. Essa questão começou a ser analisada no laboratório a partir da investigação da infecção pelo vírus Zika, causador da síndrome congênita do Zika vírus, em 2015 e 2016. Depois disso, continuamos estudando o papel da infecção pelo Zika, mas acabamos acrescentando outros vírus no nosso pipeline para entender qual é o papel dessas infecções virais em um possível desfecho para o autismo.

E já tem algum resultado a respeito dessa investigação?

Sabemos que o zika é um ‘fator aumentador’, vamos dizer assim. Se a mãe tem zika durante a gestação, o risco de aquela criança nascer com autismo aumenta pelo menos duas vezes em relação àquela que não teve a infecção. Para esse vírus, sabemos da participação, porque temos um histórico das mães na gestação, assim como o resultado dos exames laboratoriais para comprovar que elas tiveram a infecção. Fazemos o acompanhamento dessas crianças desde 2015 e tem algumas questões que nos ajudam a ter certeza de que isso está relacionado. Outra questão que temos perseguido bastante agora é o coronavírus, por causa da pandemia.

Já há algum resultado relacionado ao coronavírus?

Não! E ainda acho precoce darmos algum tipo de informação. Sabemos da interferência que tem no sistema nervoso, sabemos de alguns efeitos que ele causa, mas não estamos falando em gestação ainda. Por si só, o coronavírus tem sido investigado por causa das infecções que levaram à Covid longa. Muita gente perdeu a memória ou ficou com brain fog por um tempo, como se não se lembrasse das coisas naquele momento. Tem algumas questões que nos levaram a fazer essa investigação e que também nos mostram que, de fato, o vírus tem um papel no sistema nervoso. Se em todas as pessoas? Não. De novo, a genética de cada um é soberana e sabemos disso já há muito tempo dentro da Virologia, porque cada um responde, do ponto de vista imunológico, de uma maneira diferente ao vírus; isso é muito particular. Por isso que essa investigação da genética aliada com a infecção também não é uma investigação simples, mas temos perseguido. Agora, no caso do vírus Zika, temos dois trabalhos que já vão ser publicados que nos mostram esse aumento da suscetibilidade de pelo menos duas vezes. Portanto, o filho de uma gestante que contraiu o vírus Zika durante a gestação tem pelo menos o dobro de chance de nascer com autismo.

Há uma informação de que o número de casos de crianças com autismo está aumentando. A que se pode atribuir isso?

Olha, essa é a pergunta de mais de 1 milhão de dólares! De fato, a gente tem muito mais diagnósticos hoje em dia, por causa do aumento da capacidade diagnóstica. Certamente, esse é um fator que está interferindo no aumento do número de casos. Pode haver outros fatores relacionados e não sabemos que fatores são esses ainda, mas aposto que infecções podem ser importantes – e não estou falando só de infecção viral. A infecção viral é o que olhamos aqui no laboratório, mas pode ser infecção bacteriana ou qualquer outro tipo. Porque, na verdade, algo importante a ser considerado é a maneira como a mãe é infectada e responde contra aquela infecção que, às vezes, é assintomática, mas o organismo está reagindo contra aquela infecção. E, quando o organismo reage contra aquela infecção, produz uma série de substâncias que fazem o sistema imunológico combater aquele patógeno. E essas moléculas que produzimos, muitas vezes, são fatores que alteram a epigenética. A genética já foi formada no momento da fecundação e, se não tiver nenhuma mutação nova, fica ali. Agora, a epigenética, de acordo com a presença de fatores ambientais, pode ser alterada e pode alterar o desenvolvimento daquele feto e, portanto, ter algum tipo de complicação lá na frente. Mas é muito importante destacar que não é para a mulher grávida ficar desesperada, em uma caixinha de vidro sem fazer nada porque pode pegar uma infecção, não é isso. Tem de ter uma predisposição genética por trás.

É possível afirmar qual seria essa predisposição?

Não! Não dá para saber qual combinação do pai e da mãe vai gerar um indivíduo com uma maior ou menor predisposição para ter autismo. É claro que, via de regra, uma gestante vai tomar cuidado para não se infectar, vai ter uma alimentação adequada, balanceada; não vai se expor, não vai visitar um parente que está doente… tudo isso é de bom senso. Muitas vezes, não dá para evitar de trabalhar ou pegar um ônibus cheio, mas dá para evitar alguns hábitos que deveriam ser mantidos para nossa vida e podem ser reforçados pelo menos na época da gestação, para que a mulher evite contrair algum tipo de infecção. Atitudes simples como lavar mais as mãos, por exemplo. Enfim, ter um pouco mais de cuidado.

Nos estudos foi possível identificar, por exemplo, que mães que fizeram o pré-natal como se preconiza tiveram menos risco de terem um filho autista em relação àquelas que tiveram mais dificuldade ao acesso a esse atendimento?

Não. A gente não fez ainda uma associação do autismo com risco relacionado à condição socioeconômica, por exemplo. Aparentemente, pelos estudos que existem no mundo, isso não tem nenhuma relação. Mas, o que estamos investigando também é este papel do risco socioeconômico, de a criança ter mais ou menos acesso a estímulos, a mãe ter mais ou menos acesso à pré-natal, entre outros fatores. E o risco para o neurodesenvolvimento no auge da capacidade que aquela criança teria, ou se aquela condição de neurodesenvolvimento vai estar deficiente por algum motivo, por algum acesso que ela não teve. Isso não necessariamente vai ter um desfecho no autismo, mas pode ter outro desfecho, como uma alteração ou outra no neurodesenvolvimento, menor capacidade, menores habilidades para linguagem no futuro ou menor habilidade cognitiva para aprendizado. Então, pode ter outras implicações, não necessariamente o autismo. Temos olhado, em um primeiro momento, para essas habilidades e o quanto isso impactaria ou não. Mas não sei se vai chegar em um impacto para o autismo. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), temos uma prevalência de 1% a 2% da população mundial relacionada ao autismo, então, nosso estudo teria de ser muito maior. Só 500 crianças não dariam para termos ideia do que está acontecendo. Mas, com essas outras crianças que estamos investigando – que é um projeto que não está relacionado com os dentinhos – temos olhado para essa capacidade do neurodesenvolvimento, quanto essas crianças adquirem e são capazes de adquirir mais ou menos dessas habilidades em função do desfecho e do ambiente socioeconômico em que habitam.

Prematuridade tem alguma relação com autismo?

Sim. Prematuridade é um fator que pode estar relacionado. No nosso estudo, não vimos diferença entre parto cesárea e parto vaginal, mas prematuridade pode ser um fator ambiental que influencia para o desfecho do autismo.

Na sua opinião, pode existir alguma relação entre a formação da microbiota e o desenvolvimento do autismo?

Nas nossas pesquisas, não vimos uma relação de causa. A microbiota não causa o autismo, mas pode ser diferente no indivíduo com autismo porque, em geral, observamos que pessoas com autismo têm seletividade alimentar, se alimentam, talvez, não da maneira ideal para terem aquela microbiota linda. Essa seletividade alimentar vai diretamente influenciar na microbiota, porque somos o que comemos. A microbiota está diretamente relacionada ao tipo de alimentação, mas não pode ser considerada a causa do autismo e não pode ser considerada cura para o autismo. É importante entender que, mudando a microbiota, pode haver uma melhora de maneira geral em alguns sintomas. Nas nossas pesquisas, não vimos nenhuma relação da microbiota com o autismo, mas é importante considerar que a microbiota é um fator ambiental, então, pode ter uma influência na epigenética. O indivíduo não vai deixar de ser autista ou alterar alguma coisa se mudar a microbiota, mas algumas coisas podem melhorar. Por exemplo, a criança ou o adulto autista pode ter dor de cabeça e ficar irritada. Se diminuir as crises de enxaqueca ou as dores de cabeça, isso melhora de alguma maneira e deixa a pessoa mais calma. Assim, podem ocorrer algumas alterações no comportamento daquela pessoa, porque houve uma melhora na qualidade do alimento e uma melhora da microbiota. No entanto, a microbiota em si não é um fator causal e nem é um fator que vai mudar completamente a vida daquele indivíduo.

Existe uma idade ideal para os pais começarem a observar o comportamento do bebê e desconfiar que pode ter algum nível de autismo?

Existe, e é a partir do nascimento. Na hora que o bebê está mamando, em geral, ele olha nos olhos da mãe. Aquele contato da mãe com o bebê e do bebê com a mãe já indica alguma coisa. Algumas crianças que estão no espectro, que têm autismo, não olham nos olhos porque têm dificuldade de comunicação visual. Elas podem ter uma maior atenção para a boca e o nariz, e não para os olhos, que é para onde a gente olha na maioria das vezes. Muitas pessoas com autismo não vão olhar nos olhos, mas para a boca, e isso acontece desde pequenininho. A criança pode evitar o contato visual com a mãe e o sorriso social pode não acontecer, e tem uma série de atitudes que podem chamar a atenção da mãe e do pai, mas, principalmente da mãe, no momento da amamentação. E é importante que os pediatras ouçam essa queixa da mãe. Muitas vezes, o pediatra diz que isso ocorre porque o bebê ainda é pequeno, que é assim mesmo e vai passar. Eu tenho relatos de mães de crianças com autismo que me dizem isso. E, no fim, a pessoa acabou indo buscar um serviço de especialização em autismo para ter o diagnóstico e, de fato, a criança estava no espectro.

Quanto antes houver o diagnóstico, melhor será o prognóstico?

Sim. Quanto mais cedo fizer o diagnóstico, mais cedo a família pode começar com as intervenções, porque o cérebro é muito plástico e muda, ainda mais pequenininho. O sistema nervoso é o primeiro sistema que se forma no embrião, mas é o último que fica pronto. Tanto é que a criança nasce e não faz quase nada, depois começa a engatinhar, depois vai aprender a andar, falar, e a cabeça ainda está crescendo. Nascemos com a moleira aberta porque o cérebro ainda está crescendo. Portanto, quanto mais cedo começarem os estímulos, maior capacidade essa criança vai desenvolver. Então, é importante que o diagnóstico seja feito precocemente, para que já comece a estimular e fazer exercício para o cérebro. O cérebro estimulado vai aumentar a capacidade que teria se não tivesse sido estimulado. É importante observar isso desde cedo na criança. A mãe, o pai ou a família, quem estiver cuidando daquela criança, sempre deve prestar atenção se a criança interage, para onde ela olha, se olha nos olhos, qual o tipo de brincadeira que tem, o comportamento, pelo que se interessa. É muito claro esse tipo de comportamento em uma criança para suspeitar que esteja no espectro e buscar um serviço de diagnóstico.

Os pediatras precisam aprender um pouco mais sobre o transtorno para que possam auxiliar esses pais?

Não podemos generalizar, porque existem pediatras que prestam bastante atenção e fazem um diagnóstico bem precoce também. Acho que, de fato, as escolas de Medicina poderiam já reforçar essa questão desde a formação dos alunos e durante a residência dos pediatras. O próprio governo poderia promover workshops ou mais ferramentas de formação para esse diagnóstico acontecer pelo Brasil afora. Melhor capacitação dos profissionais e aumentar o número de profissionais também seria muito importante. E é muito importante que a gente consiga fazer com que essa pessoa com autismo desenvolva o máximo das suas habilidades, e isso tem de começar cedo. O indivíduo com autismo pode se tornar um adulto não funcional, do ponto de vista de fornecer algo para a sociedade, de produzir algo que vai gerar rendimentos para a sociedade em geral. Além disso, muitas vezes, um membro da família acaba tendo que dar suporte ao indivíduo com autismo, o que faz com que esse membro deixe de ser produtivo. Do ponto de vista financeiro, se a gente tivesse diagnóstico precoce, se estimulássemos essas pessoas de maneira adequada, muitas delas poderiam conseguir se inserir no mercado, trabalhar, conseguir gerar renda para suas famílias, melhorar a qualidade de vida delas e da família que está envolvida. Sabemos de várias histórias de sucesso. É importante que isso seja estimulado para que a gente tenha esse tipo de desfecho, que vai ser bom para todo mundo. É um entendimento que precisaria ser reforçado e que vai precisar do aporte, tanto financeiro quanto de formação do próprio governo.

“… quanto mais cedo fizer o diagnóstico, mais cedo a família pode começar com as intervenções, porque o cérebro é muito plástico…”

O grande desafio de quem trabalha com o autismo é encontrar suporte em nível amplo na saúde, verba e disponibilidade de outros pesquisadores para estudar o espectro e para melhorar a condição dessas crianças?

Quanto mais pessoas estudarem o autismo, mais informação e mais rápido vamos ter. É importante não só entender as causas do autismo, sejam genéticas ou ambientais, mas identificar como seria a melhor maneira de tratamento. Sabemos que a Análise do Comportamento Aplicada é o padrão ouro. Mas será que não pode haver também algum suporte farmacológico específico que ajude nessa ciência comportamental e nesses mecanismos biológicos de uma maneira mais eficiente? Aumentar a capacidade dessa pessoa também é importante. Ter um local adequado para essas pessoas serem atendidas e estimuladas desde pequenas até adultas – porque não podemos esquecer que há os autistas adultos também. Tem pouca informação a respeito disso no Brasil, pouquíssima. Temos muitas comunidades de pais que se organizam e nos dão informações, mas não há um lugar para procurar essa informação organizada a partir do governo. Eu não sei dizer quantos autistas têm no Brasil. Usamos esse dado de prevalência da OMS e, considerando a população brasileira, posso dizer que tem de 2 a 4 milhões de famílias envolvidas com autismo no Brasil, que é de 1% a 2% da população. Portanto, temos um número razoável de pessoas com autismo no Brasil. Onde estão essas pessoas? Como é a condição de vida delas? O que a gente pode fazer para melhorar? Será que não dá para montar escolas especializadas que estimulem essas pessoas? Acho que tem bastante coisa que poderia ser feita. E acho que o desafio dos pesquisadores que trabalham com autismo é sensibilizar as agências de fomento para darem mais fomento para pesquisa nessa área e entenderem o quanto isso é importante e impactante.

Dentro do projeto A Fada do Dente, em 2010 foi inserida a distrofia muscular de Duchenne. Por quê?

Inserimos outras alterações genéticas também. Quem tem distrofia muscular de Duchenne tem uma mutação específica no gene e vimos que existe uma sobreposição grande de pessoas com Duchenne e autismo. Isso é uma maneira de olhar para um gene que é expresso muito precoce no neurodesenvolvimento, que é o gene alterado da distrofia, que é uma doença neuromuscular, e tentar entender o papel daquele gene, o quanto seria importante para o desfecho do autismo. Então, tanto Duchenne quanto Phelan-McDermid, que é chamado autismo sindrômico, estão no nosso pipeline de estudos. Tentamos entender o papel de determinados genes no funcionamento do sistema nervoso para aprender como esses genes funcionam e o que fazem para ajudar a entender o que poderíamos fazer para mudar essa alteração. De que maneira poderíamos interferir para ajudar, já que esse gene está deixando de ser produzido porque está mutado? Como poderíamos interferir para melhorar o fenótipo clínico desses pacientes?

A senhora falou na possibilidade de um fármaco, uma vez que há uma inflamação no cérebro. A indústria farmacêutica tem interesse no autismo?

A indústria farmacêutica tem interesse, sim, mas precisa ter alguma informação na mão, e isso vem um pouco depois da pesquisa. Eu sei de algumas indústrias fora do Brasil que estão olhando para o autismo e trabalhando com um ou outro fármaco, de acordo com alguns dados de pesquisadores, para tentar ver se esse fármaco é viável, como ele chegaria no cérebro e qual teria que ser a dosagem. Então, estão olhando para isso sim, mas ainda de uma maneira muito tímida, comparando com outras doenças neurodegenerativas como Alzheimer, Parkinson, esclerose lateral amiotrófica e esquizofrenia, que têm sido pesquisadas com mais frequência do que o autismo pela indústria farmacêutica.

Em 2014, o projeto A Fada do Dente se tornou uma organização social focada em pesquisa científica. O que mudou a partir desta nova formação?

Eu acho que mais responsabilidade. A ideia partiu de um pai de uma pessoa com autismo que nos disse para transformarmos, primeiro, em uma ONG e, depois, em uma organização social. E é uma maneira de recebermos doações, porque muitas pessoas, muitas famílias, queriam ajudar além de doar o dente do seu filho. Hoje, somos uma organização de interesse público que pode receber doações. Temos um site com uma conta bancária e as pessoas que quiserem podem doar. É uma maneira de ter algum tipo de doação para o projeto. Já recebemos algumas doações e esse dinheiro entra diretamente para a pesquisa. Tem muitos alunos envolvidos, inclusive, que fazem parte da organização, que se empenham e ninguém ganha nada por isso. Todo mundo está envolvido porque acredita na pesquisa, acredita no projeto e sabe da seriedade e da importância. Temos pessoas relacionadas, familiares de autistas e autistas no projeto. Este projeto não é meu, eu só comecei! O projeto é de todos e todo mundo é convidado a participar da maneira que puder ajudar.

O projeto continua recebendo dentes de leite?

Continuamos, mas tive de parar por um tempo, porque estava com uma verba mais restrita e precisava escolher entre continuar as pesquisas que já estavam em andamento ou receber os dentinhos. Porque temos de extrair o recheio do dente ainda fresco, que tem que ter caído quase na hora. Não usamos o osso, mas o recheio do dente, que são as células que estão lá dentro e têm de estar vivas. Por isso, o dente tem de cair, ser colocado em uma substância em copo com água, para não ressecar, e ser entregue dentro das primeiras 24 horas. Essas células, que chegam no laboratório, são retiradas do recheio do dente de leite e colocadas em cultura de células com reagentes. Como isso tudo é trabalhoso e custoso, tive de escolher se continuava recolhendo e aumentando o banco, ou se continuava dando andamento às pesquisas que já estávamos fazendo. Achei melhor optar por continuar as pesquisas, até conseguirmos receber um financiamento, alguma verba para voltar a receber doação dos dentinhos de leite. Mas continuamos mantendo o canal com as famílias. Começamos a distribuir questionários para irem respondendo para nos dar mais dicas desses fatores ambientais que podem estar envolvidos. Claro que tudo isso tem um Comitê de Ética, tudo isso é sigiloso. Não revelamos nome, mas os dados são importantes para a pesquisa.

A senhora acredita que, no futuro, vai ser possível prevenir o autismo?

Eu acho que, dependendo das causas que encontrarmos, talvez em alguns casos possamos prevenir em alguns indivíduos, mas não sei falar um número, em porcentagem. Mas pode ser que, para algumas pessoas, isso seja possível de ser prevenido sim. Mas não acho que seja completamente, porque tem as causas genéticas.

A senhora acredita na cura?

Eu não gosto da palavra cura, porque me parece algo mágico e não é assim. Mas acredito que, dependendo da pessoa autista, vamos ter um tratamento farmacológico associado a um tratamento comportamental. Como já falei, o cérebro é plástico, então, o exercício para o cérebro, além de um tratamento farmacológico específico, poderá ajudar. Hoje em dia, há alguns tratamentos para melhorar algumas comorbidades, por exemplo, se a criança é agressiva, melhora a agressividade; se tem dificuldade para dormir também ajuda. Acredito que podemos chegar a uma droga específica, por exemplo, para aumentar o número de sinapses e deixar mais próximo do que seria o ideal para ter um funcionamento melhor do cérebro. Isso eu acredito que vai ter sim. Nosso laboratório trabalha tentando olhar para isso. Tem muita coisa ainda para ser descoberta, e quanto mais gente pesquisar sobre isso, mais informação a gente vai gerar, por isso que estou fazendo a minha parte e formando um monte de gente para pesquisar sobre o autismo.