Por Adenilde Bringel
A Medicina do Estilo de Vida (MEV) é um movimento que começou em 2004, nos Estados Unidos, e se expandiu pelo mundo. A modalidade, que chegou ao Brasil em 2018, representa a sistematização de orientações comportamentais capazes de reduzir a ocorrência de doenças crônicas não transmissíveis por meio de iniciativas que promovam hábitos de vida mais saudáveis. A médica Mariana Cavalcanti, diretora da regional São Paulo no Colégio Brasileiro de Medicina do Estilo de Vida e professora do Programa de Pós-graduação de Medicina Integrativa da FAPES, explica qual é o princípio básico desta nova modalidade que preconiza um olhar global do paciente e trabalha para a prevenção de doenças por meio da adoção de hábitos saudáveis.
Como surgiu esse conceito de Medicina do Estilo de Vida?
A modalidade surgiu dessa necessidade diante de uma demanda de altos custos com saúde sem a garantia de retorno efetivo de saúde para as pessoas. Paralelamente aos altos gastos em saúde, há doenças crônicas matando cada vez mais a cada ano. Muitos estudos populacionais têm mostrado, desde a década de 1970, o impacto que algumas mudanças de comportamento poderiam trazer para as doenças cardiovasculares – até mesmo em uma redução em diâmetro de estenose por placas de ateroma nas coronárias, por exemplo. Além disso, a Medicina convencional é focada em fazer ótimos diagnósticos de doença e propor os tratamentos com procedimentos e medicamentos oferecidos pela indústria farmacêutica – prática que serve muito bem para tratar doenças agudas e agudizações de processos crônicos. No entanto, carece desse olhar para as causas que levam ao surgimento das doenças crônicas. Assim, a Medicina do Estilo de Vida surge justamente da percepção de que é fundamental atuar nas causas que levam ao adoecimento e como prevenir, tratar e até reverter essas doenças crônicas utilizando os pilares do estilo de vida – que são todos baseados em evidências científicas – como prioridade do tratamento em uma linha de cuidado focado no indivíduo ao invés de ser centrada na doença. O objetivo é o resgate da saúde. A Medicina do Estilo de Vida também prescreve medicações sempre que necessário, mas a prioridade do tratamento está nesse olhar para quais são as causas que levaram ao adoecimento, quais são as causas das doenças cardiovasculares, do diabetes, da obesidade, do câncer para, realmente, prescrever esses pilares do estilo de vida para cada pessoa de acordo com o nível de engajamento que consegue ter. Avaliamos as várias estratégias de mudança de comportamento, porque se o paciente apenas passar no médico e escutar que precisa fazer exercício físico não vai funcionar, na maioria das vezes. E foi justamente a partir dessa percepção de que estava faltando o treinamento dos médicos e dos profissionais da saúde para promover o engajamento dos pacientes é que surge a Medicina do Estilo de Vida.
Quais são os principais pilares da Medicina do Estilo de Vida?
Os pilares definidos como essenciais e que já têm um alto número de evidências científicas de que a incorporação é capaz de prevenir e tratar doenças crônicas são seis: gerenciamento do estresse, conexões sociais saudáveis, uma boa qualidade de sono, atividade física (e aqui temos a percepção de que todo movimento conta), alimentação predominantemente vegetal em sua forma integral e controle de tóxicos – principalmente cigarro e álcool, mas também açúcar e telas. O excesso de tela atrapalha a produção de melatonina e as pessoas estão com excesso de tela porque estão estimuladas pelo ambiente, que diz para todo mundo que há uma necessidade de usar telas. O sono é um pilar muito desprestigiado na sociedade atual, que estimula muita produtividade e olha o sono como perda de tempo ou fraqueza. Muitas vezes também vemos, acompanhando processos de emagrecimento, pessoas muito engajadas, com uma superdieta e com atividade física, só que não estão dormindo bem. E, sem o sono adequado, o indivíduo não consegue diminuir a resistência insulínica, importante para o emagrecimento, e não consegue melhorar a liberação de fatores de crescimento que vão agir na recuperação de lesões teciduais, fundamental para evitar e tratar dores crônicas. Enfim, toda a nossa fisiologia quando estamos acordados é regulada pelo que acontece quando estamos dormindo. Por isso, é muito importante priorizar as horas de sono que cada um precisa por dia – porque essa necessidade é muito individual. Além disso, é fundamental fazer o gerenciamento do estresse e ter conexões sociais saudáveis e reais, porque a solidão mata mais do que o cigarro. Os números de suicídio, depressão e ansiedade são muito associados com essa sensação de solidão. Por causa do crescimento do mundo virtual, as pessoas vivem mais conectadas com as máscaras, com os filtros, e têm pouca conexão real, com vínculo. Precisamos ter vínculo para liberar ocitocina que vai trazer bem-estar e felicidade.
Estilo de vida é efetivamente um dos motivos de as doenças aparecerem, independentemente da herança genética, por exemplo?
Sim. A epigenética é o termo que explica esse efeito que nosso estilo de vida tem em modular o que será expresso ou silenciado na nossa carga genética. E como os testes de genética estão mais acessíveis para a população, isso é algo muito importante de ser bem esclarecido. O poder que a herança genética tem de desenvolver uma determinada doença é estimado em cerca de 20% a 30%. Portanto, os outros 70%-80% são devido ao estilo de vida, e há autores que sugerem até 90% de influência. Um indivíduo que tem em seu código genético o risco aumentado para desenvolver determinado tipo de câncer, acidente vascular cerebral (AVC), diabetes ou outra doença, não está condenado a ter essa doença. Essa herança genética existe, mas é importante entender que este peso da genética vai depender das nossas escolhas diárias. O conhecimento de que os hábitos do dia a dia podem silenciar ou ativar esses genes que vão desenvolver doenças é muito importante! Justamente por isso é preciso mudar a forma como os médicos prescrevem mudanças no estilo de vida, porque ao dizer para o paciente ‘você precisa caminhar’ ou ‘você precisa se alimentar melhor’, soa apenas como uma orientação, um conselho. Isso é justamente o que diferencia a Medicina do Estilo de Vida e os médicos que a praticam do médico que está clinicando na Medicina convencional. Quando o cuidado é centrado na pessoa ao invés da doença, a conexão não é hierárquica. Portanto, não devo aconselhar o paciente, mas sou treinada em estratégias para auxiliá-lo a compreender por si mesmo que mudanças de comportamento são necessárias para o resgate de sua saúde, e que vamos formular em conjunto metas e tarefas atingíveis para seu momento.
“Os pilares definidos como essenciais e que já têm um alto número de evidências científicas são gerenciamento do estresse, conexões sociais saudáveis, uma boa qualidade de sono, atividade física, alimentação predominantemente vegetal em sua forma integral e controle de tóxicos – principalmente cigarro e álcool, mas também açúcar e telas.”
Quem são os médicos e profissionais da saúde que praticam a Medicina do Estilo de Vida?
São todos aqueles que se depararam com a realidade chocante e impactante de verem, anualmente, 600 mil mortes só por doenças cardiovasculares – é uma epidemia de Covid por ano, com a diferença de que conhecemos a cura. São os médicos que estão descontentes de ver a sua prática não repercutir em uma melhora significativa da saúde dos pacientes. Os médicos estão buscando a Medicina do Estilo de Vida como uma oportunidade de incrementar sua prática e são clínicos gerais, pneumologistas, cardiologistas, geriatras, pediatras, hebiatras, endocrinologistas… Além de outras profissões da saúde, como a Nutrição ou a Educação Física, por exemplo. Múltiplos profissionais podem praticar a Medicina do Estilo de Vida que, nos Estados Unidos, já é uma especialidade médica. No Brasil, ainda não é uma especialidade.
Como essa orientação funciona na prática?
Médico e paciente vão estabelecendo tarefas que contribuirão para o resgate de sua saúde, de acordo com os seis pilares. Pode ser, por exemplo, a tarefa de evitar o uso de telas uma hora antes de dormir para que a meta de dormir até 22h30, com boa qualidade de sono, seja atingida. Existe toda uma ciência de mudança de comportamento e, na Medicina do Estilo de Vida, se estuda essas teorias e como auxiliar o indivíduo, com toda sua complexidade, a mudar esses hábitos que estão no campo do inconsciente, que estão no modo automático. O profissional de Medicina do Estilo de Vida também convida o paciente para esse autoconhecimento e para olhar para a sua dinâmica de vida e entender, como agente ativo, que vai buscar autonomia na sua saúde. Só assim pode ir se organizando para ter mais saúde, porque saúde é esse estado de bem-estar físico, psíquico, emocional, social e espiritual. Somos seres com toda essa complexidade e a Medicina do Estilo de Vida valoriza cada aspecto.
De que maneira o estilo de vida interfere na saúde e a partir de quando?
Já sabemos que o estilo de vida interfere nas doenças cardiovasculares e nas doenças metabólicas de modo geral e, quanto antes intervirmos, melhor, porque são condições inflamatórias. Assim, quanto menos estresse oxidativo, que é cumulativo, menos processos de aterosclerose, por exemplo. E as evidências demonstram que essa influência da epigenética acontece antes mesmo do nascimento, desde a gestação. O estilo de vida da mãe já influenciará na formação e na capacidade de aquela criança que ainda vai nascer ser um adulto saudável ou não. Hoje, já se fala que o impacto do estilo de vida na expressão gênica vem desde a avó, ou seja, o estilo de vida da avó vai repercutir na capacidade de saúde ou doença do neto. O código genético não muda, mas o que se expressa muda e é modulado pelo estilo de vida. E é interessante avaliar o impacto do contexto no desenvolvimento de doença ou de saúde ainda na infância, porque a Medicina do Estilo de Vida coloca muito foco no indivíduo e é importante olhar para as causas e observar o contexto que leva esse indivíduo a desenvolver determinados hábitos. As crianças estão comendo mal porque nas casas tem mais ultraprocessados do que alimentos saudáveis? Como fazer com que a escolha mais fácil seja a mais saudável? Daí a importância de organizar o contexto daquela pessoa e daquela família. Além disso, é preciso reorganizar o urbanismo e a arquitetura das cidades para que tenham mais praças iluminadas com segurança, mais ruas seguras para o pedestre, para que tenham mais árvores e locais onde as pessoas possam caminhar e tenham locais agradáveis para fazer conexões sociais, além de acesso a alimentos mais saudáveis, entre outras questões. Um bom exemplo é o The Blue Zone Project, que sugere parcerias público/privadas para fomentar o estilo de vida das Blue Zones (cidades de maior longevidade no mundo) junto a prefeituras de algumas cidades nos Estados Unidos. Conseguiram substituir o projeto de construção de uma larga avenida para carros ao redor do lago de uma cidade por uma grande via de pedestres e ciclistas. E, com isso, estimularam as pessoas a se locomoverem caminhando e, inclusive, engajaram idosos para levar as crianças andando para a escola – fortalecendo seu senso de propósito, além de movimentarem o corpo. Se a população tivesse um estímulo para caminhar mais com ruas que tornassem a caminhada uma opção fácil e atraente, isso iria ajudar a melhorar o estilo de vida, como o projeto tem demonstrado. Existem estudos mostrando que as escolas que permitem às crianças fazerem lanches nos corredores ou na sala de aula têm maiores índices de obesidade infantil. Então, neste projeto, eles conseguiram parceria das escolas para proibir o consumo de alimento durante as aulas e, com isso, obtiveram importante redução dos níveis de obesidade infantil. Essas iniciativas não são tão difíceis de serem implantadas e fariam toda a diferença na vida de crianças, adultos e idosos.
“O estilo de vida da mãe já influenciará na formação e na capacidade de aquela criança que ainda vai nascer ser um adulto saudável ou não. Hoje, já se fala que o impacto do estilo de vida na expressão gênica vem desde a avó…”
Qual seria o primeiro passo para que o Brasil pudesse alcançar algo parecido com esse projeto de Blue Zones?
Alguns passos importantes já foram tomados, por exemplo, a construção do Guia Alimentar Brasileiro, que é fruto de um esforço de uma comunidade muito boa. O guia está excelente e, se for seguido, por exemplo, por todas as escolas municipais, já seria uma mudança bem importante. A cesta básica também deveria seguir o Guia Alimentar Brasileiro, mas não segue. Outro fator é pensar no ambiente urbano e favorecer realmente que tenha mais árvores nas ruas, mais áreas de pedestres, mais ciclovias para estimular a mobilidade e o movimento e, assim, estimular o cidadão para diminuir o comportamento sedentário.
“Embora seja uma ciência toda embasada nas evidências científicas, a Medicina do Estilo de Vida ainda tem muita resistência e muito desconhecimento por parte dos médicos.”
Alguns hospitais já estão criando seus próprios núcleos de Medicina do Estilo de Vida. Isso é importante para ampliar esse conceito?
É um desejo otimista, mas ainda está muito incipiente dentro da própria Medicina, com a nossa formação direcionada para o estudo de doenças, tratamentos e procedimentos. Embora seja uma ciência toda embasada nas evidências científicas, a Medicina do Estilo de Vida ainda tem muita resistência e muito desconhecimento por parte dos médicos. Alia-se a isso o pouco tempo disponível nas consultas por causa de toda a dinâmica dos planos de saúde e a compartimentalização das especialidades – que acabou se tornando necessária. Sei que o Instituto Dante Pazzanese, em São Paulo, começou um ambulatório de Medicina do Estilo de Vida, mas ainda não conheço bem. No Hospital Israelita Albert Einstein, a MEV é praticada apenas no check-up empresarial ou particular. Mas o plano de saúde não cobre o acompanhamento e, com isso, essa informação acaba se perdendo.
Intestino saudável também é importante na Medicina do Estilo de Vida?
O intestino gera um impacto em todo o funcionamento do nosso corpo, com a produção de neurotransmissores. Por exemplo, 50% da dopamina, que traz bem-estar, é produzida no intestino; 90% da serotonina, que traz mais alegria, também é produzida no intestino. E sabemos hoje que esses microrganismos interferem, inclusive, na nossa carga genética. O estilo de vida vai repercutir para que tenhamos uma boa saúde intestinal, principalmente para a construção de um microbioma intestinal adequado. Por exemplo, um indivíduo com uma alimentação baixa em fibra – que vai matar de fome as bactérias intestinais benéficas que se alimentam de fibras – começa a ter uma proliferação de bactérias proteolíticas que produzem uma substância que se torna um inibidor da saída do LDL-colesterol do sangue para o fígado. Assim, uma alimentação baixa em fibra aumenta o LDL-colesterol no sangue, um marcador que aumenta o risco de ter um infarto, por exemplo.
Qual é a sua opinião sobre o uso dos probióticos?
A utilização de probióticos é uma estratégia que podemos utilizar dentro desse contexto de saúde intestinal, embora não faça parte da ciência da Medicina do Estilo de Vida. Na minha prática, prescrevo probiótico com muita frequência, mas sempre com o cuidado e a atenção de entender qual o tipo de probiótico. Hoje, também é possível fazer o sequenciamento genético do microbioma intestinal para identificar especificamente qual tipo de probiótico seria mais adequado para aquele indivíduo. O tipo de probiótico também precisa ser bem prescrito para que ajude a desinflamar o intestino, ou seja, para ajudar na modulação do intestino. Mas, sem dúvida, o probiótico é uma estratégia de prescrição essencial e precisamos utilizar com inteligência.
Ter amigos também é fundamental para ter uma boa saúde?
Exatamente. Ouso até ressaltar este pilar como o mais fundamental, porque somos seres sociais e precisamos desse vínculo. Não é infrequente vermos uma pessoa com um astral elevado, um ótimo gerenciamento do estresse, uma resiliência emocional forte e com muitos vínculos reais que, apesar de comer mal, dormir mal ou estar sedentária, apresenta um nível de saúde elevado para o esperado. A conexão social e o senso de pertencimento contribuem muito para essa construção de resiliência emocional. Isso é algo que se vê muito nas Blue Zones. Ter com quem contar diminui a descarga de noradrenalina e de cortisol diante de situações estressantes. Então, o indivíduo lida melhor com situações estressantes e isso gera um impacto no seu corpo – que é bem diferente de quem está o tempo inteiro com uma resposta ineficiente ao estresse. Estudos mostram que as conexões sociais também estão bem associadas com maior índice de felicidade.
Em resumo, para viver mais e melhor é fundamental mudar hábitos pouco saudáveis e estimular isso desde a infância?
Sem dúvida! Para que possamos não só aumentar os anos de vida, mas aumentar a vida nos anos. •